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QUEM NÃO SONHOU EM SER UM JOGADOR DE FUTEBOL?

Arte: Ícaro Machado

Por Ícaro Machado

O Cabreiro fica no interior do Ceará. Mais precisamente no litoral leste, na cidade de Aracati. No entanto, diferente de Canoa Quebrada, o distrito mais famoso da região, a pacata vila fica nos confins de Aracati – quase fugido – , numa estrada entre Santa Tereza e Tabuleiro, cortado pela CE-123, à margem oeste do rio Jaguaribe. Lá, a pesca artesanal em suas três lagoas e o artesanato em palha são o forte financeiro dos menos de 200 habitantes que sobrevivem na região. Dos pontos turísticos, uma delegacia, uma escola, um posto de saúde, uma praça com quadra esportiva e duas igrejas formam a nuance atrativa do pitoresco vilarejo. 

 

Sem a água salgada do imenso mar que banha toda a costa da terra dos bons ventos, a comunidade do Cabreiro é um terral só, e que só se molha quando resolve chover. E quando molha, lama. Mela tudo. E o campinho coberto de poeira amarronzada fica todo empapado com poças de água que viram a diversão dos miúdos e de Gabriel, que fez sete anos neste mês de junho. E Viva São João!  

 

Gabriel Zagallo é filho de dona Maria das Graças e de seu Zé Pedro, um fanático torcedor do Flamengo e jogador de sonho fracassado. E adivinha, foi ele quem inventou de colocar esse nome duplo no menino. Bem pudera. O Flamengo sempre teve uma estreita relação com a Copa do Mundo. Ao todo foram cedidos trinta e três jogadores para a Seleção Brasileira em Copas do Mundo, o que faz do Flamengo o terceiro clube do país que mais cedeu jogadores. Além de ser o time com o maior número de torcedores espalhados pelo Brasilzão. Dos cinco mundiais conquistados, quatro tiveram jogadores do Flamengo: 1958, 1970, 1994 e 2002. A exceção fica em 1962. No ano do bi mundial, o Flamengo não teve nenhum jogador convocado. Os jogadores rubro-negros campeões mundiais foram Moacir, Joel, Dida, Brito, Gilmar, Juninho Paulista e, adivinha, claro, Zagallo.  

 

Gabriel, o “aposto” no nome do filho, foi escolha de Maria das Graças, que é muito religiosa, e “é nome de anjo”. Desde que Gabriel nasceu, Zé junta de tudo para tornar o filho um jogador de futebol. Sonho antigo. E num é que o menino gosta. No seu aniversário de 5 anos, os pais compraram um bolo redondo-bola todo enfeitado em glacê açucarado com o brasão do flamengo ao centro. Cerca de quinze balões de ar em vermelho e preto juntaram-se ao redor do bolo formando o que até hoje pode se dizer que fora a maior festa de aniversário que já se viu na região. As pessoas não costumam gastar dinheiro em festa de criança. As pessoas não gastam dinheiro em festa alguma. O hino do clube Carioca tocou umas vinte vezes nesse dia. Dos presentes, 3 bolas em borracha frágil, dois ternos daqueles não oficiais e uma chuteira da Nike, suada, dada pelo pai. Foi uma festança. 
 

Gabriel sempre escuta o que o pai diz e sonha mesmo em se tornar um grande jogador de futebol, assim como o Neymar, seu jogador favorito. Ele diz que quer viajar pelo mundo, ganhar muito dinheiro e comprar um montão de chocolates. Sonho de criança. Maria das Graças só quer que o filho vá para a escola e comece a frequentar as missas aos domingos. Próximo ano ele entra no catecismo e vai começar a ajudar o pai com a pesca. Filho único, Gabriel precisa ajudar em casa. 
 

Faltam apenas três dias. O Coração de Gabriel Zagallo já não bate como antes. Agora, acelerado, ele anseia pela copa do mundo que lhe bate à porta pela segunda vez. Com o álbum de figurinhas trazido pelo pai do mercado longe de ficar completo, ele se alegra por não lembrar dos 7 a 1 que o Brasil sofreu quando ele ainda tinha 3 anos. Talvez fosse jovem demais. Esse ano, aos 7, espera que tudo seja diferente. Deseja que a seleção se torne hexa, pediu até de presente de aniversário quando apagou as velas na semana passada. Sua mãe fez até um bolinho para o dia não passar em branco. 

Gabriel quer ser zagueiro. Fora ele, tem Mateus, de sete, e Pedro Henrique, de nove anos, seus dois melhores amigos, que em 2016, ano da sua festa do Flamengo, ajudaram a furar as três bolas que ganhara de presente. A chuteira despedaçada já grita em seus pés. Todos os dias, fim de tarde, os três jogadores se juntam no campo onde jogam bola e sonhos. São comparsas. E neste ano, combinaram de assistir a todos os jogos do Brasil. Planejam a copa há quase dois anos. Acho que na verdade esse planejamento é desde que aprenderam a discernir as coisas que esboçam isso. No entanto, existe um grande impasse entre eles nessa reunião: onde vão assistir à final? Nessa situação, Gabriel e Pedro Henrique disputam por quem vai sediar o jogo final, que, claro, será do Brasil contra a Alemanha, assim desejam. Na casa do Mateus não tem televisão. 
 

Há três semanas, os três moleques se meteram numa confusão. Nesse ano tem chovido muito – graças a Deus, sempre agradece Maria das Graças. Em uma das chuvas, os três corriam soltos pelo campo de areia em barro que fica no quintal da casa de Mateus, próximo à imensa floresta de cajueiros.  Depois desse dia, Gabriel pegou uma virose braba, uma tal de “virose do caju”. Três dias de cama. O posto do Cabreiro não recebe visita médica desde o afastamento dos médicos haitianos. Remédio popular, só na sede. Foram dias difíceis. Muitos banhos e chás de raízes. Desde então, o Gabriel ficou permanentemente proibido de ir jogar no campinho. Deu em nada. Eles iam escondidos. 

Nesse intervalo, durante esse molho de três dias, Gabriel contou à mãe de um sonho que tivera em uma de suas noites em delírio de febre. Ele disse que se tornará um jogador de futebol esse ano e que era convocado para a copa, que fazia muitos gols, um deles de bicicleta, e que ganhava o hexa na Rússia em uma prorrogação que se estendera por quase 10 minutos. Dito às pressas, eufórico, ele indaga à mãe se isso podia acontecer. Se é possível ele ser convocado esse ano, já que joga futebol desde os três. Em resposta, a sua mãe sorri, sorri e completa o riso dizendo que ele ainda é muito jovem para trazer o hexa para o Brasil esse ano... Balança a cabeça em descrença e mede a sua temperatura. Inconformado, ele retruca, diz que isso não é verdade. Ele não é jovem demais, rezinga. Não é? Duvida Maria das Graças. Gabriel então se senta na cama e conta que no sonho, antes de ganharem o jogo, havia outras crianças em campo, mas elas não estavam jogando exatamente, não com ele, elas jogavam com outras bolas que mais pareciam bombas de gás para dispersar os jogadores. Os expulsavam do lugar.  
 

Súbito.

Maria das Graças fita-o em silêncio e completa dizendo que isso não existe. Que a Copa do Mundo é a união dos países, que todos se juntam para comemorar e festejar, como foi no Brasil na copa passada, mas que ele era jovem demais e não lembra. Mas ela assistiu a tudo na televisão. Envolvido pelo discurso apaziguador da mãe, Gabriel virou de lado, aceitou a modéstia e dormiu. Não se importava com as crianças e suas bolas explosivas, ele queria mesmo era ser jogador profissional outra vez. 

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